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A constituição portuguesa tem mais de 32 mil palavras e de 210 mil caracteres, incluindo espaços, distribuídos por 296 artigos e um preâmbulo. A constituição americana, para contextualizar a nossa análise, tem cerca de 7 mil palavras e pouco mais de 42 mil caracteres, também incluindo espaços, e já contabilizando todas as emendas que foram feitas. Um blockbuster, uma constituição light feita à americana, para as massas. Mesmo os franceses, apesar dos seus tiques antiamericanos, nunca se esforçaram por se demarcar deste estilo de constituição pop, mantendo uma com cerca de 13 mil palavras.
Ao contrário de alguns homens do bitaite, eu sou a favor da preservação deste património. A atenção ao pormenor, a exaustividade e um olhar céptico sobre o mundo, fazem desta obra uma construção defensiva da sociedade livre e democrática portuguesa, mesmo que à data da sua criação pouco ou nada se falasse de pedofilia, aquecimento global, redes sociais, parcerias público-privadas, crise financeira ou activos tóxicos, que teriam merecido, certamente, uma centena de outros artigos.
Se para alguns, esta constituição tem artigos de mais, para mim nunca serão suficientes, sabendo nós que as ameaças à nossa bonita democracia germinam rapidamente, não exigindo nem muita água nem muito sol. Não nos vamos alongar, mas nesta lei não se encontra qualquer vestígio de uma preocupação com a vida extraterrestre, esperando que daqui a uns anos não sobrem lamentos por não termos um instrumento constitucional que nos proteja das ameaças vindas de outros planetas. E quem estiver atento, como eu tenho estado, ao percurso do nosso presidente da república não se surpreenderia com a possibilidade deste ter sido há muito raptado por extraterrestres e substituído por um fantoche alienígena, com indisfarçáveis inépcias para a integração social e política.
Com a intervenção do tribunal no orçamento de estado, fiquei, como todos os portugueses, a saber da existência de um tribunal constitucional e até descobri que quem faz leis anticonstitucionais não é constituído arguido. Digamos que fazer leis anticonstitucionais não é crime, é mais um lapso, um erro, e só erra quem arrisca, cuja penalização para os seus autores é a de ouvir um sermão e, mesmo que contrariados, serem obrigados a fazer tudo de novo, acompanhado de algumas instruções de como alcançar os seus objectivos contornando os diversos artigos da constituição. O desrespeito pela constituição, portanto, não pode ser chamado de crime, mas sim de anticonstitucional. Como desviar dinheiro dos seus legítimos proprietários é claramente antilegal. O eclipse de alguns milhares de milhões do BPN é anticonstitucional, pelo que os responsáveis, neste tribunal, seriam convidados a repensar as suas estratégias para enriquecer rápida e estupidamente. O tribunal constitucional é o tribunal de sonho para qualquer criminoso. Nem sequer há um palavrão para chamar a estes senhores que violaram a constituição, o pior mesmo será você é um grandessíssimo anticonstitucionalista, o que não sendo agradável de se ouvir, também não ofende por aí além.
A revolução de abril veio devolver ao povo algumas liberdades fundamentais, como a de participar em brainstormings, e os portugueses, como é comum nestes períodos revolucionários, entusiasmaram-se e tornaram-se num dos povos mais criativos dessa década em democracia e leis. As ideias pareciam tão boas e espectaculares que ninguém quis esperar e foram implementadas de imediato. Este enquadramento talvez explique porque é que os portugueses sempre se estiveram a cagar para a constituição, não no sentido figurado de desprezar, mas naquele sentido que só “estar a cagar para” consegue exprimir em toda a sua profundidade e multicamadas semânticas. Talvez se a constituição fosse mais curtinha, os portugueses lhe reservassem um pouco mais de atenção, mas se a nossa constituição só tivesse 20 a 30 artigos, seria difícil justificar a existência de um tribunal constitucional com 13 juízes para verificar a constitucionalidade das leis. Quando muito seria necessário um funcionário público, o fiscal das leis, e que teria hoje a concorrência de qualquer empresa de tecnologia a criar apps para telemóvel, onde qualquer português poderia fazer um teste rápido de constitucionalidade.
A simplicidade legal e burocrática cria um sentimento de insegurança e fragilidade nos portugueses, como o capuchinho vermelho a atravessar a floresta para levar o lanche à avó. Mas o problema é que o nosso sistema legal se torna tão denso, uma floresta de artigos e leis onde qualquer ameaça se pode camuflar, que qualquer português se sente como o capuchinho vermelho a ter a estúpida ideia de ir visitar a estranha avó eremita que vive numa casa de madeira no meio de uma floresta.
Curiosamente, ainda não foi criado um órgão superior para verificar a legalidade das decisões do tribunal constitucional, com 13 membros, que actuaria sempre que o tribunal constitucional emitisse um parecer; também com uma acção preventiva, fiscalizando a necessidade de intervenção do tribunal constitucional quando este se esquecesse de intervir e ninguém se lembrasse de o lembrar.
A nossa constituição é uma obra riquíssima, criativa e engenhosa por um lado, mas por outro, e esse aspecto torna-a particularmente bela, parece revelar um olhar pueril sobre o passado, referindo-se, no preâmbulo, que a revolução veio coroar a longa resistência do povo português ao regime fascista.
Se há coisa que todos temos de assumir, é que o nosso regime fascista foi dos menos interessantes, cinematograficamente falando, de que há memória, muito por culpa do povo obediente e calminho que foi o nosso. E aqui teria sido a grande conquista de Abril, deixar escrito no preâmbulo da constituição que os revolucionários, “cagando para a longa e paciente obediência do povo português”, puseram fim ao tacanho regime fascista; imprimir na lei das leis o estado de espírito que faz parte da natureza de todos os revolucionários e políticos, que estes se estão a cagar para o povo, embora nesta revolução em particular possamos dar graças por isso.
Obviamente que não se podia falar mal do povo, a malta da revolução agia como se tivesse uma procuração passada pelos portugueses, pelo que acusar o povo de ser colaboracionista, mole e insciente tornaria num sketch humorístico os cânticos de “o povo é quem mais ordena”. Destas contradições nasceu a nossa constituição, que para o bem e para o mal lá vai protegendo o que resta da nossa democracia - parece que alguns dos nossos valores democráticos foram irresponsavelmente investidos em activos tóxicos nas últimas décadas e talvez já estejam completamente perdidos. Infelizmente, não será a melhor altura para pedirmos um segundo resgate, desta vez da cidadania e da democracia já quase falidas.
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